CZ e Sam: Entenda a história conturbada dos marajás da cripto e o fim da FTX
De parceiros a nêmesis, descubra como o que parecia uma simples troca de farpas culminou e um dos maiores escândalos da história da cripto.
A falência da FTX, Alameda e o império de Sam Bankman-Fried (SBF) está estampada nos principais portais de finanças no mundo. O estopim? O CEO da Binance Changpeng "CZ" Zhao, muitas vezes pintado como um implacável caçador de competidores, anunciou a venda de todo seu FTT (criptomoeda da FTX) colocando suspeitas sobre os negócios de Sam.
A partir daí foi como se uma trilha de dominós tivesse começado a cair. A Binance anuncia a compra da FTX e depois retrocede, deixando claro que o problema era muito maior, e o bank-run (clientes sacando fundos da corretora) fecha a tampa do caixão: a FTX entra com pedido de falência.
Apesar da clara influência agressiva de CZ nessa história, SBF não é exatamente o garotinho injustiçado de Jane Street. Vamos fazer uma viagem ao tempo através do falido casamento entre esses 2 expoentes de web3.
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A união: Binance investe na nova corretora de derivativos FTX
O ano era 2019 e a Binance, fundada em 2017 por CZ, já figurava como líder do mercado de corretoras de criptomoedas. Outras corretoras como Coinbase, BitMEX e Gemini nunca conseguiram chegar perto de tirar a liderança da Binance, mas por alguma razão, CZ viu com grande interesse uma nova corretora de derivativos que estava levantando fundos naquele ano, a FTX, e decidiu investir.
Nessa época a Binance ainda não oferecia derivativos, então a FTX não se apresentava claramente como concorrente, mas Sam Bankman-Fried aparentemente tinha planos ousados. Além da aquisição de ações, a Binance fez uma grande compra de FTT (token da FTX) para selar uma parceria onde a FTX também desenvolveria soluções para o ecossistema da Binance.
O crescimento rápido da FTX pareceu incomodar o time da Binance. Na época, ao anunciar o 2.º round de investimento de $900 milhões com nomes gigantes como Paradigm, Sequoia Capital e Ribbit Capital notou-se que não constava mais o nome da Binance entre os investidores. Ficava claro que a empresa de CZ tinha dado pra trás. Ao ser questionado sobre isso, CZ revelou á Forbes que a Binance decidiu vender totalmente sua parte.
Nós vimos um tremendo crescimento deles [FTX], e estamos muito felizes com isso mas saímos completamente [do time de investidores]. A venda é parte de um ciclo normal de investimento. Ainda somos amigos mas não temos mais uma nenhuma relação de investimento. - Changpeng "CZ" Zhao, CEO da Binance
Poucos na época engoliram essa desculpa. Mas o crescimento rápido dos negócios de SBF e sua confiança no próprio sucesso, típica do homem branco abaixo dos 30 (Sam chegou a dizer que, após superar a Binance e Coinbase, adquirir a Goldman Sachs era uma possibilidade) enganavam bem. No geral, parecia que a Binance estava formalmente reconhecendo a FTX como um forte concorrente.
💡 Pra ser justa, CZ costumava dizer aos funcionários que a Binance seria maior que o Google. Ah, se vendesse a autoestima desses homens em um potinho…
Mas a verdade é que esse passo pra trás da Binance nada parecia com um evento comum. O investimento anunciado em 2019 não era somente um aporte financeiro, mas também uma promessa de parceria entre as 2 empresas, com desenvolvimento de produtos em prol de evoluir o ecossistema de cripto. Isso não some assim, do nada.
Pessoalmente, acho que eles perceberam grande divergência de valores e objetivos, que passou a render diversas alfinetadas nos últimos anos que culminou no fim do império de Sam, estragando seus planos de um dia comprar alguns dos maiores bancos e dominar o mundo. Mas vamos por partes.
Conflitos regulamentários
Após a notícia de que a Binance não fazia mais parte do time de investidores da FTX, as divergências entre cada um dos CEOs ficava cada vez mais clara. CZ impunha regras esquisitíssimas aos seus funcionários sobre troca de mensagens e exposição. O objetivo era jamais vazar a localização dos times e manter as mensagens importantes criptografadas. Isso tudo para conseguir driblar ao máximo os olhos dos órgãos reguladores em países como Estados Unidos e Reino Unido (mas publicamente ele jura que é por estar alinhado com os valores da comunidade cripto de anonimato e descentralização).
Enquanto isso, a FTX do Sam também tinha um plano de ação em termos de regulamentação, que divergia bastante de seu concorrente: se não pode contra eles, junte-se a eles. Somente na campanha de Biden nos Estados Unidos, SBF investiu cerca de $50 milhões, sendo o segundo maior doador, e ainda planejava injetar mais 1 bilhão de dólares na campanha de 2024. Era claro o interesse do CEO da FTX na política dos Estados Unidos e que ele estava usando boa parte do seu poder de fogo financeiro para criar influência.
Se tinha alguma dúvida de que Sam estava injetando dinheiro na política dos Estados Unidos para dominar a narrativa de regulamentação de cripto, seu envolvimento direto com a proposta DCCAP não deixava dúvidas: ele apoiava publicamente as investidas regulamentarias sobre DeFi e queria estar à frente disso.
Nessa época ficou claro que o aparente poder e capas de revista (muitas provavelmente compradas) tinham subido á cabeça de Sam, e que ele se achava pronto para mexer com o vespeiro da política monetária dos Estados Unidos enquanto representava a expansão das criptomoedas pro mainstream, mas agora ele simplesmente não tinha o apoio da comunidade mais.
Sam. Com todo o respeito. Isso é uma merda. Você está dizendo que DeFi deveria ser sancionada. Você está dizendo que bloqueios on-chain devem ser normalizados. Você está sugerindo que front-ends de DeFi devam se registrar como corretoras. Não, isso não é razoável. Isso eliminaria os EUA da indústria da cripto. - Ryan
O vazamento das finanças da Alameda Research
O império de Sam não era concentrado na FTX. Além da corretora, ele também era o fundador da Alameda Research, instituição que realizava trades e fazia grandes operações de yield farming e market making. As coisas começaram a parecer estranhas quando, em Agosto, o co-CEO Sam Trabucco anunciou sua saída da empresa. Apesar do tom fofinho e “good vibes” da thread, a saída de um CEO costuma mostrar que as coisas poderiam não estar indo bem.
…anuncio hoje que estou deixando o cargo de co-CEO da Alameda Research - Caroline continuará como CEO. Permanecerei como consultor, mas não terei mais uma presença forte no dia-a-dia da empresa - Sam Trabucco
E não estavam. No dia 2 de novembro de 2022, a Coindesk publicou um artigo com detalhes de um documento vazado que mostrava que a Alameda e a FTX tinham muito mais coisas em comum do que apenas o mesmo fundador. Nos registros financeiros da Alameda foram encontrados tokens FTT, SOL, SRM (todos de projetos do SBF) e registros de empréstimos desses tokens, avaliados na época em cerca de 10 bilhões de dólares.
A maior parte da saúde financeira da Alameda Research dependia de tokens diretamente emitidos pela FTX e outros tokens relacionados ao Sam. Tokens esses com liquidez ínfima e altamente voláteis e manipuláveis. Tinha um alto risco da Alameda Research ficar com problemas de liquidez com qualquer movimentação de preços do “SBFverso”. A saúde financeira da Alameda parecia depender da FTX, então como será que estava a saúde financeira da corretora?
O golpe final de CZ no castelo de areia de Sam
Eis que chegamos no fatídico 6 de novembro de 2022, que definitivamente vai ficar marcado na história da cripto: CZ anuncia que vai vender todo FTT em posse da Binance. Lembrando que lá em 2019 a Binance fez um aporte em FTT quando investiu na FTX, e recebeu mais um montante (entre 1 e 2 bilhões de dólares) ao vender sua participação em 2021. Ou seja, a Binance tinha a faca e o queijo na mão (leia-se: uma cacetada de FTT) pra causar um grande estrago no preço do token da corretora de SBF.
Como parte da saída da Binance do time de investidores da FTX no ano passado, recebemos o equivalente a cerca de US$ 2,1 bilhões em BUSD e FTT. Devido a recentes revelações que vieram à tona, decidimos liquidar qualquer FTT remanescente em nossos livros. - CZ
Mas CZ não parou por aí. Sabendo que as recentes notícias envolvendo os aportes milionários de Sam na política bem como articulações para regulamentar DeFi tinha deixado muita gente contra o bilionário, ele acrescentou o motivo pra vender todo o FTT: Sam estava supostamente fazendo lobby contra seus competidores com sua recente influência política. Ou seja, financiando medidas políticas que beneficiassem seus negócios e prejudicassem a concorrência. E ainda tem mais! Ele comparou FTT com Luna.
A liquidação do nosso FTT é apenas uma gestão de risco pós-saída, aprendizados após o caso LUNA. Demos apoio antes, mas não vamos fingir fazer amor depois do divórcio. Não somos contra ninguém. Mas não apoiaremos pessoas que fazem lobby contra outros players do setor pelas costas. - CZ
Para refrescar sua memória, o caso Luna foi um death-spiral da rede inteira do Terra. A UST, que deveria funcionar como uma stablecoin, tinha seu preço controlado por um sistema de emissão e queima de Luna, moeda da rede. Basicamente Luna, uma moeda inútil era usada como garantia daquela que era então uma das maiores “stablecoins” da época, e muita gente confiava nessa estabilidade. Se CZ estava comparando FTT com Luna, isso significava que possivelmente Sam estava usando FTT como garantia em operações, como empréstimos.
Ao anunciar uma venda em massa de FTT e dar indícios de que os negócios do Sam eram um castelo de areia baseado nessa moeda volátil e pouco líquida, era de se esperar que a própria venda dos FTT da Binance causariam uma queda de preço de FTT, e levaria junto a FTX e a Alameda.
Se tornou então uma tragédia auto-proclamada: começou-se uma venda em massa de FTT e saques da FTX por medo. Até esse ponto ainda existia uma ponta de esperanças de que as finanças da FTX não fossem tão mal-geridas, mas rapidamente percebemos que não era bem assim.
Após grandes retiradas de dinheiro da FTX, usuários começaram a perceber que os saques não estavam sendo processados mais. Analistas financeiros pediam provas de fundos da FTX, que nunca eram mostrados. Não tinha nenhuma transparência.
Medidas Desesperadas
CZ, se você deseja minimizar o impacto do mercado em suas vendas de FTT, a Alameda terá prazer em comprar tudo de você hoje por US$ 22! - Caroline Ellison
Em uma tentativa de acalmar os investidores e segurar o preço do FTT, a CEO da Alameda, Caroline Ellison, ofereceu uma oferta fixa a $22 para a Binance vender todo seu FTT, mas a oferta foi recusada por CZ publicamente.
Nesse ponto o time da Binance já tinha sacado o tamanho da tragédia e não queria mais estar envolvido em negócios com FTX ou Alameda. Em seguida, grande parte do time jurídico da FTX saiu da empresa.
Pra piorar, foi visto por registros online que o time da Alameda, especialista em trading, estava fazendo grandes movimentações com o intuito de arrecadar fundos em pouco tempo. Parecia tudo muito amador e mal gerido para uma empresa milionária fundada por um suposto gênio que estampou capas das revistas de finanças.
Mas nada disso conseguiu fazer o milagre de tampar o rombo financeiro nos cofres da FTX e Alameda. Finalmente o pedido de falência veio.
Hacks, governo da Bahamas e outros saques obscuros
Em meio a essa bagunça, no dia 12 de Novembro foi detectada uma grande e estranha movimentação na FTX: enquanto os saques já estavam congelados, cerca de $400 milhões foram retirados da corretora. Ryne Miller, conselheiro geral da FTX US confirmou que houveram transações não autorizadas (hack) e que eles estavam movendo alguns assets restantes para proteger o que restou.
Em meio á todo o frenesi de movimentações de fundos da corretora, o órgão regulador de securities das Bahamas emitiu uma press-release afirmando que tinha solicitado que a mesma transferisse os fundos restantes para uma carteira sob controle do órgão.
Quando esse documento foi divulgado, imediatamente grandes influencers e portais de notícia começaram a atribuir o governo das Bahamas ao hack reportado anteriormente.
Porém, alguns pesquisadores que estão acompanhando o fluxo do dinheiro afirmam que sim, houve um hack. Além da má gestão de acesso aos fundos da FTX que foi relatada no documento de declaração de falência, o padrão de transferência dos assets e distribuição de carteiras não bate com um time tentando proteger o dinheiro. Pelo contrário, estão claramente tentando dificultar o tracking dos assets e perdendo muito em taxas no caminho. Enquanto outras carteiras, de fato, sacaram alguns tokens horas depois, e transferiram para uma multisig, sendo identificadas como uma operação de “whitehat”.
A verdade é que, pelo menos enquanto o dinheiro estiver on-chain é possível acompanhar seu fluxo, por mais complexo que seja. Porém, quando esse dinheiro passa por corretoras centralizadas perdemos essa trilha. Portanto, por agora não é possível afirmar com certeza quanto está em posse de cada entidade. É possível acompanhar as carteiras que Zach está constantemente monitorando em seu perfil do Chainabuse.
De JP Morgan á Lobo de Wall Street da crypto
O documento de entrada de falência revelou mais escândalos inacreditáveis, como saques e empréstimos impróprios das empresas para as contas pessoais de Sam, e falta de controle dos assets e movimentações.
E não para por aí: ao invés de aproveitar do direito de ficar calado, Sam decidiu “desabafar” com uma repórter da Vox por DMs no Twitter.
Dentre várias confissões que parecem ter saído de uma série da Netflix (não duvido que vire uma) vale destacar que, supostamente, Sam:
Apoiou publicamente a regulamentação da cripto só por imagem e marketing (provavelmente pra ganhar relevância e poder em Washington);
Acredita que é preciso tomar ações não éticas para ganhar respeito e relevância. E que no final das contas, o que importa pras pessoas é quanto dinheiro o negócio gera;
Sabia que a Alameda pegava empréstimos da FTX para trading, porém não sabia o quanto. E ele acredita que isso não se enquadra como “usar dinheiro dos usuários da FTX” para trade 😡;
“Descobriu”, tarde demais, que a contabilidade de ambas as empresas era péssima. E que se pudesse voltar atrás, a única coisa que consertaria seria separar a FTX da Alameda;
Se arrepende de ter entrado com o pedido de falência, pois acredita que conseguiria levantar os fundos necessários em poucos dias (se isso te lembra do infame “Fyre Festival” estamos juntos 👊).
Importante destacar que foram descobertas relações de negócio e provavelmente amizade entre a repórter, Sam e a CEO da Alameda, Caroline Ellison. Portanto, existe a hipótese dessa matéria ter sido revisada por Sam antes da publicação, ou até conter um esforço de amenizar os ocorridos. Se for o caso, imagina o quão pior isso ainda poderia ser.
Parece um caos, mas a verdade é que essa bagunça e estratégias de marketing ajudaram a sustentar esse esquema por muito tempo, e perduraria por mais tempo se Sam não tivesse exagerado no topete e tentado puxar o tapete do CZ, fundador da Binance.
Pra fechar com chave de ouro, dia após dia aparecem evidências que aquele estilo de vida simples e despojado estampado nas notícias era pura mentira. Já foram achadas 19 propriedades, várias consideradas de alto padrão, nas Bahamas (lembrando que a FTX mudou seu escritório principal de Hong Kong pra Bahamas em Setembro 2021). Aparentemente as casas foram compradas para funcionários da FTX. E uma casa, comprada em Junho desse ano e avaliada em mais de 16 milhões de dólares, está nos nomes dos pais de Sam.
Impacto na indústria e o futuro da cripto
Os impactos do escândalo da FTX e Alameda ainda estão se desenrolando. As empresas de SBF faziam gestão do dinheiro de outras instituições, que agora também estão á beira da falência, como a Genesis. Mas isso já é outra história, que posso explorar melhor em outro post (se não esse aqui não acaba nunca). Mas dê uma olhada nessa thread com um mínimo resumo do caso.
Quanto a CZ, ele continua publicamente a levantar a bandeira da transparência e honestidade a qualquer custo na cripto. Mas está na hora de aprendermos que não existem heróis, e que CZ pode muito bem colocar a saúde da indústria em 2o lugar quando se trata de colocar suspeitas sob um concorrente, sem muita verificação prévia.
Mas uma coisa é certa: toda essa história nos mostra a importância da transparência na gestão financeira. Quando nem o próprio CEO sabe o que está acontecendo nas contas da sua própria corretora ou, pior, sabe mas esconde de seus clientes e parceiros, vemos que tudo isso poderia ser evitado com fluxos de caixa transparentes, onde analistas profissionais poderiam constantemente verificar a saúde financeira da empresa. A falta de transparência também contribui para teorias megalomaníacas e medo generalizado, afinal de contas é mais fácil projetar o pior caso em uma crise.
E é por isso que DeFi, NFTs não vão á lugar nenhum. Sim, existem passos importantes a se avançar na usabilidade e segurança das aplicações, e até conversas com reguladores, e é isso que move as pessoas que estão nessa pelas razões certas.
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